Treinar o ritmo para melhorar a aprendizagem da leitura e da escrita
- CIS-Iscte

- há 2 horas
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Será que as competências rítmicas moldam a forma como aprendemos a ler e a escrever? É a esta questão que Marta Martins, investigadora do Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS-Iscte), pretende responder. Em dois projetos complementares, estuda tanto a predisposição rítmica das crianças como o efeito causal do treino musical rítmico na aquisição da leitura e da escrita. Esta investigação irá ainda mapear as bases neuronais desta relação através de ressonância magnética estrutural e funcional.

“O processamento de vários aspetos rítmicos musicais tem sido consistentemente associado às competências de leitura e escrita das crianças, sobretudo nas fases iniciais de aprendizagem. No entanto, continua por esclarecer como esta relação se desenvolve e quais os mecanismos que a sustentam”, explica Marta Martins.
A investigadora sublinha que os estudos existentes deixam várias questões sem resposta, incluindo se o treino musical que trabalha predominantemente aspetos rítmicos poderá promover estas aprendizagens e se esse efeito é independente da fase de aprendizagem em que a crianças se encontra. Para responder a estas questões, a investigadora do CIS-Iscte coordena agora dois projetos de investigação dedicados a explorar estes efeitos.
Dois projetos, um objetivo
O projeto “RhythMus_inRaw – Evaluating Musical Rhythm Predisposition and Training in Shaping Children's Reading and Writing Skills”, financiado pela fundação BIAL (Ref. 139/2024) e realizado em colaboração com o Agrupamento de Escolas Irmãos Passos (Matosinhos), dá continuidade ao trabalho de Marta Martins sobre os fatores neurocognitivos associados às dificuldades de leitura, aprofundando o papel que o treino musical rítmico poderá desempenhar na sua mitigação.
Neste projeto, a investigadora conduz um ensaio controlado randomizado por grupo (cluster randomized control trial), em que turmas inteiras são distribuídas aleatoriamente por três condições experimentais: treino musical exclusivamente rítmico, treino musical Orff (treino musical compreensivo que funciona como um controlo ativo) ou grupo sem treino organizado e sistemático (controlo passivo). No estudo participarão crianças de 6 anos, falantes de português, que frequentam escolas públicas do Agrupamento, e que serão monitorizadas ao longo de dois anos letivos. “As crianças serão avaliadas antes, durante e após o treino em tarefas rítmicas, leitura, escrita e motricidade fina, bem como em medidas de cognição geral, musicalidade e variáveis sociodemográficas.”, esclarece Marta Martins. O estudo decorre no contexto escolar regular, assegurando elevada validade ecológica. Serão também recolhidos dados de ressonância magnética, com enfoque na função cerebral, permitindo mapear as redes neuronais que sustentam estes processos e a relação entre ritmo e literacia.
A investigadora antecipa que “o treino rítmico melhore diferentes processos rítmicos, incluindo a perceção e sincronização”, competências que os seus trabalhos anteriores relacionam à leitura através de processes fonológicos, bem como às melhorias motoras resultantes do treino musical. Assim, prevê-se que o treino rítmico reforce simultaneamente processos fonológicos e motores, que contribuirão para o desenvolvimento da leitura e da escrita. Em contraste, “o treino musical Orff que iremos implementar deverá melhorar a motricidade fina e alguns processos rítmicos (ainda que em menor escala), replicando resultados dos nossos estudos anteriores e, consequentemente, impactar principalmente a fluência da escrita”, explica. Os correlatos neuronais deverão refletir as alterações comportamentais observadas, particularmente em regiões auditivas e motoras.
Para expandir esta linha de investigação, Marta Martins iniciará em breve o projeto “Rhythm4RAW – Can Training in Musical Rhythm Improve Children’s Reading and Writing Skills?”, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (Ref. 2023.16303.ICDT). O projeto integra três estudos: a adaptação e validação de uma escala para avaliar de forma compreensiva a musicalidade de crianças, criando a primeira ferramenta portuguesa com este propósito; um estudo transversal com crianças dos 6 aos 12 anos, que compara as competências de leitura e escrita de crianças com e sem treino rítmico, incluindo no grupo sem treino rítmico crianças com elevada predisposição rítmica; e um ensaio controlado randomizado por grupo, semelhante ao implementado no projeto RhythMus_inRaw, que replicará o estudo anterior mas com enfoque nos correlatos de estrutura cerebral que suportam a relação entre processamento rítmico e leitura e escrita. Em conjunto, estes estudos permitirão distinguir os efeitos da predisposição dos efeitos causais do treino, e clarificar em que condições o processamento rítmico pode apoiar o desenvolvimento da literacia.
De acordo com a investigadora, as diferenças-chave entre os dois projetos residem no tipo de correlato neuronal analisado e no desenho experimental adotado para estudar a mesma questão de investigação. O projeto RhythMus_InRaw centra-se na predisposição rítmica e nos efeitos do treino rítmico ao longo de dois anos letivos em crianças de 6 anos, e na função cerebral subjacente ao processamento rítmico e às competências de literacia. O projeto Rhythm4RAW tem um alcance mais abrangente, inclui estudos com desenho transversal e longitudinal, integra a validação de uma escala de musicalidade, e foca-se nos correlatos estruturais associados aos efeitos em estudo. Além disso, examina a relação entre ritmo e literacia numa faixa etária mais alargada, envolvendo crianças dos 6 aos 12 anos.
Porquê treinar as competências rítmicas?
A fundamentar estes projetos, o trabalho anterior de Marta Martins, realizado em colaboração com investigadores da Universidade do Porto, demonstrou que a perceção de ritmo – e não a de melodia – se associa às competências de leitura de crianças do primeiro ano de escolaridade.
“Os nossos resultados sugerem ainda que esta relação é mediada pelo processamento fonológico”, explica Marta Martins, sublinhando que “os processos rítmicos parecem ajudar as crianças a discriminar e organizar as unidades sonoras de fala, suportando o desenvolvimento da leitura”, acrescenta.
A investigadora do CIS-Iscte está neste momento a trabalhar sobre os dados de um novo estudo em que participaram mais de 300 crianças do 1º ao 4º ano de escolaridade, e em os resultados suportam novamente a relação entre perceção rítmica e leitura e a mediação desta relação por processos fonológicos. A investigadora adianta, no entanto, que “esta relação se esbate em crianças em estados de desenvolvimento leitor mais avançado”. Estes resultados preliminares levaram ao reorientar da faixa etária alvo nos dois estudos longitudinais agora a arrancar, e que incluirão crianças com 6 anos, acompanhando-as ao longo do 1º e 2º ano do ensino básico, precisamente a fase mais sensível e inicial de aquisição da leitura e da escrita.
De uma forma geral, o conhecimento atual sugere que o treino rítmico pode ser útil como suporte à aprendizagem da leitura e da escrita, em particular em estádios iniciais de aquisição. Contudo, esta premissa necessita ser testada através de estudos longitudinais que considerem as diferenças individuais entre crianças e os seus contextos.
A pré-disposição rítmica e o contexto familiar são importantes para a aprendizagem da leitura e da escrita?
Num outro estudo publicado em coautoria com colaboradores das Universidades do Porto e de Jena, Marta Martins explorou longitudinalmente como a predisposição rítmica modula os efeitos do treino musical na componente motora e quais as regiões cerebrais implicadas nesse processo. Durante cerca de 6 meses, crianças de 8 anos participaram em treino musical, treino desportivo, ou integraram um grupo de controlo sem treino sistemático e organizado, sendo avaliadas antes e após o treino em competências rítmicas e motoras e através de neuroimagem estrutural. “Observámos que, antes do treino musical, as crianças com melhor perceção rítmica apresentavam menor volume de matéria cinzenta em diversas regiões motoras”, afirma Marta Martins. A investigadora acrescenta que “o treino musical melhorou o desempenho motor das crianças, e esse efeito foi mais saliente naquelas com melhor discriminação rítmica no início do estudo”. Os resultados indicaram ainda que o treino musical induziu a redução de volume de matéria cinzenta no cerebelo e no giro fusiforme do hemisfério esquerdo—regiões que se associavam à perceção rítmica antes do treino—e que esta redução se correlacionou com melhorias superiores na motricidade. Nenhum destes efeitos foi observado nos grupos de treino desportivo ou de controlo. “Este estudo demonstrou que o treino musical Orff promove o desenvolvimento motor e fá-lo de forma mais marcada em crianças com melhor perceção rítmica. Resta-nos ainda clarificar se estas melhorias motoras podem transferir-se para a fluência de escrita—uma das questões a que queremos responder nos novos projetos”, sintetiza a investigadora.
Num estudo prévio, distinguido pela Associação Portuguesa de Psicologia Experimental com o Prémio APPE 2023, a mesma equipa investigou se diferenças no QI e no estatuto socioeconómico se refletiam em diferenças estruturais no cérebro de crianças com dificuldades de fluência de leitura. Os resultados indicaram que as crianças com défices de fluência apresentavam menor volume de matéria cinzenta no giro temporal superior direito e noutras regiões occipito-temporais e fusiformes, quando comparadas com os leitores típicos. Além disso, entre as crianças com dificuldades de leitura, as diferenças no volume de determinadas áreas dependiam do estatuto socioeconómico, mas não do QI. Como refere a investigadora, “entre as crianças com dificuldades de leitura, aquelas que provinham de contextos socioeconómicos mais favorecidos apresentavam maior volume de matéria cinzenta no giro angular direito do que crianças provenientes de contextos menos favorecidos.”. O giro angular é uma região do lobo parietal envolvida na integração de informação multimodal e que está implicado na compreensão semântica da linguagem, no processamento simbólico (incluindo o numérico), e em funções cognitivas como memória e atenção. Para a equipa de investigação, as diferenças nesta região podem refletir níveis distintos de estimulação cognitiva ou de linguagem, ou variações nos níveis de atenção, frequentemente associados a contextos socioeconomicamente menos favorecidos.
O que se espera descobrir e porque é que isso importa
Apesar dos avanços já alcançados, a literatura é ainda parca em estudos longitudinais e multimétodo que permitam acompanhar, com rigor, o processo de aquisição da leitura e da escrita, contribuindo para diminuir os seus défices. Ainda menos são aqueles que investigam como o processamento rítmico e o treino musical rítmico podem influenciar estas aprendizagens. É precisamente essa lacuna que os projetos que agora se iniciam e que têm parceiros nas Universidades do Porto, Jena e Boston, na Unilabs—Boavista, nas ULS São João e Matosinhos e no Agrupamento de Escolas Irmãos Passos, procuram preencher. Ao combinar medidas comportamentais, treino musical rigorosamente controlado e neuroimagem funcional e estrutural, estes projetos posicionam-se para responder a perguntas fundamentais: De que forma o comportamento e o cérebro se moldam com o treino rítmico? Quem beneficia mais deste treino e porquê? Como é que predisposição e experiência interagem no moldar da literacia? Os resultados que emergirem destes estudos não só aprofundarão o conhecimento científico sobre este tema, como poderão abrir caminho a novas práticas educativas, mais sensíveis às diferenças individuais e informadas por evidência robusta. No conjunto, este trabalho antecipa uma contribuição decisiva para compreender como o ritmo, um elemento universal da experiência humana, se pode tornar um aliado poderoso na promoção da literacia infantil.
Texto escrito por Pedro Simão Mendes (Gestor de Comunicação de Ciência)







