Investigação apresenta novo modelo para compreender os impactos individuais da prevenção da cultura de cancelamento
- Pedro Simão Mendes
- 1 de jul.
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Um estudo recente realizado no Centro de Investigação e de Intervenção Social (CIS-Iscte) introduz o modelo de Pressão para uma Conduta Perfeita (PPC, do inglês Pressure for a Perfect Conduct), concebido para explicar a forma como os indivíduos experimentam e respondem à cultura do cancelamento.

Com o rápido crescimento da Internet e das redes sociais, as pessoas podem hoje comunicar entre si mais facilmente do que nunca. Neste contexto, as plataformas digitais podem imortalizar a informação, tendo-se tornado cada vez mais locais de escrutínio da nossa atividade passada. Com esta possibilidade, surgiu também a sensação de vigilância constante dos discursos, com a consequente autovigilância e autocensura para evitar ser-se alvo de cancelamento. A cultura de cancelamento (cancel culture) pode ser definida como a prática generalizada, em grande parte impulsionada pelas redes sociais, em que indivíduos ou grupos retiram coletivamente o apoio a uma pessoa, empresa ou organização que se considera ter agido de forma ofensiva ou imoral. De acordo com os autores, esta cultura de cancelamento “funciona como uma forma moderna de vergonha pública ou de responsabilização, muitas vezes descrita como um ‘tribunal de opinião pública’ digital”.
Os autores desta investigação - Tiago Rôxo Aguiar (CIS-Iscte & BRU-Iscte), Diniz Lopes (CIS-Iscte) e Thomas R. Brooks (New Mexico Highlands University) - consideram que, nestas condições, as pessoas são impulsionadas a procurar a perfeição para evitar o escrutínio e o cancelamento online. Assim, propõem um novo conceito - a Pressão para uma Conduta Perfeita (PPC) - e um novo modelo teórico para explorar os efeitos individuais que surgem da prevenção do cancelamento.
No artigo publicado, a PPC é descrita como “a pressão que uma pessoa sente para se comportar de forma perfeita sob a ameaça de ser cancelada”. Esta pressão está fortemente enraizada no conceito de perfecionismo, no sentido em que as pessoas estabelecem padrões pessoais excessivamente elevados e se envolvem em autoavaliações demasiado críticas para evitar erros a todo o custo. É frequente observarmos pessoas que se retratam como tendo um corpo perfeito ou um estilo de vida perfeito, que constituem exemplos de como o perfecionismo está intrinsecamente ligado às redes sociais. Os autores explicam que “como ser cancelado pode resultar em desaprovação social, danos à reputação ou outras consequências negativas” (por exemplo, J.K. Rowling), a ameaça de ser cancelado motivará as pessoas a manter uma persona online altamente cuidada e polida para evitar repercussões.
Com base em investigação desenvolvida em vários subcampos da Psicologia Social, os investigadores explicam que a cultura do cancelamento pode servir como um mecanismo de controlo para reforçar um leque de valores e/ou comportamentos, levando a uma mais elevada autovigilância e a autoapresentação perfeita. A adoção destes comportamentos seria uma estratégia adaptativa para evitar o cancelamento através da variável psicológica mediadora aqui apresentada (a pressão para uma conduta perfeita). “O modelo teórico que propomos considera cinco variáveis que predizem esta pressão para uma conduta perfeita: a auto-pressão percebida e o estatuto percebido, que se relacionam com aspirações perfecionistas; e as repercussões do cancelamento percebidas, a identidade de grupo e o nível de concordância com a opinião pública, que se relacionam com preocupações perfecionistas”, esclarece Tiago Rôxo Aguiar, doutorando em Psicologia no Iscte e primeiro autor deste artigo científico.
No estudo, a equipa de investigação avaliou empiricamente a validade externa do modelo proposto, realizando entrevistas exaustivas com 20 utilizadores e utilizadoras de redes sociais em Portugal. Através da análise de conteúdo das transcrições das entrevistas, a equipa explorou a forma como a cultura de cancelamento influencia o comportamento online e offline, a saúde mental e as opiniões das pessoas. Os e as participantes relataram sentir uma pressão considerável para se comportarem de forma a reduzir as possibilidades de virem a ser canceladas. Impulsionadas pela constante monitorização e julgamento dos outros, esta pressão levaria então a um sentido elevado de autovigilância e comportamentos ligados à autocensura.
Embora investigação prévia não seja consensual quanto à existência ou à valência da cultura de cancelamento, os dados deste estudo sugerem que pessoas leigas reconhecem o fenómeno e consideram que o cancelamento pode ser realizado a qualquer pessoa, e não apenas por figuras poderosas. Além disso, participantes afirmaram que esta pressão para uma conduta perfeita pode ter impacto na saúde mental das pessoas e nas suas interações sociais, tanto para quem é cancelado como para quem cancela. “Os resultados globais, embora obtidos com uma amostra limitada, apoiam o potencial do modelo enquanto ferramenta de investigação futura para quantificar e prever como a cultura de cancelamento afeta as pessoas em diferentes contextos”, concluem os autores.
Ao propor uma abordagem estruturada para avaliar os efeitos psicológicos da cultura de cancelamento, esta investigação abre novas possibilidades para a investigação psicossocial. Também leva a sociedade a considerar as implicações do vigilantismo online na saúde mental e a necessidade de intervenções para atenuar os seus efeitos adversos. Em termos gerais, o estudo oferece um enquadramento fundamental para a compreensão e a abordagem dos efeitos pessoais da cultura de cancelamento na era digital, com a clara necessidade de desenvolver mais investigação sobre o tópico.
Texto escrito por Pedro Simão Mendes (Gestor de Comunicação de Ciência)